Novembro de 2019. Wuhan, China. É anunciado o primeiro caso confirmado de Covid-19. Março de 2020. Porto, Portugal. Os meios de comunicação social davam conta de que havia um infetado e um outro em avaliação. A partir daí, o dia-a-dia, a vida como a conhecíamos, mudou – até aos dias de hoje.
Os primeiros dados de um estudo divulgado pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge mostraram que, no cenário inicial de infeções a nível nacional, dominava uma variante do SARS-CoV-2 com uma mutação específica numa proteína. Pelos quatro cantos do mundo multiplicaram-se linhas de investigação com foco na proteína Spike, que se tinha relevado fundamental para que o vírus infetasse, com sucesso, as células humanas.
Todo o mais pequeno pedaço de informação sobre ela serviu para ajudar Sérgio Sousa e a sua equipa do laboratório BioSIM que, desde cedo, foram chamados para esta luta de desenvolver fármacos que pudessem impedir a infeção.
O trabalho começou logo nesse mesmo mês em que, no mundo – e no país -, eram confirmados casos atrás de casos. “Na altura, fomos abordados pela Crowd Fight for Covid, uma plataforma colaborativa de cientistas espalhados pelo mundo, e foi-nos pedido que entrássemos numa rede de investigadores com técnicas experimentais já capazes de fazer certos testes para avaliar os mecanismos de propagação do vírus”, conta o investigador.
Sem hesitar, o grupo português arregaçou mangas e embarcou no desafio. A eles coube encontrar, através de recursos computacionais, moléculas com capacidade “inibitória”, ou seja, de evitar a propagação do vírus.
“Testámos cerca de 200 mil moléculas para tentar escolher um conjunto delas que posteriormente passassem para ensaios experimentais”
A computação ao serviço da ciência
A proteína Spike do SARS-CoV-2 é, segundo Sérgio Sousa “uma parte essencial para que o vírus consiga infetar as células humanas”. “É uma espécie de espigão que existe na superfície do vírus, que interage com os recetores ACE2 das células humanas, presente nas células pulmonares”, explica, acrescentando que é se houvesse um “reconhecimento” entre as duas.
Para desenhar fármacos que possam evitar esta interação entre a proteína do vírus e a humana, o grupo do BioSIM começou por criar um “modelo tridimensional” deste processo, usando recursos computacionais da Infraestrutura Nacional de Computação Distribuída. Construíram-no “à escala atómica”, através de “estruturas cristalográficas” que já haviam sido publicadas por outros cientistas, e simularam o tal reconhecimento. Fizeram-no através de Unidades de Processamento Gráficas – mais conhecidas por GPUs – que, como explica o investigador, “são usadas popularmente para permitir uma melhor visualização de gráficos”, como acontece, por exemplo, em jogos de computador. Na investigação de Sérgio Sousa, foram usadas para “estudar sistemas com várias centenas de milhar de átomos, para perceber como é que diferentes proteínas interagem entre si”. Neste caso concreto, para estudar a forma como o ocorre o reconhecimento molecular entre a proteína Spike do vírus e os recetores ACE2.
O modelo tridimensional serviu de base para que fosse testado um grande número de moléculas recolhidas de “bibliotecas virtuais” que podem ser compradas, para perceber se alguma conseguiria impedir que o vírus infetasse as células humanas. “Testámos cerca de 200 mil, para tentar escolher um conjunto delas que posteriormente passassem para ensaios experimentais”, adianta Sérgio Sousa. Desta lista de moléculas, importava descobrir se conseguiam ligar-se a este complexo Spike-ACE2 (e por lá permanecer) e qual a força desta associação. Para tal, usaram Unidades de Processamento Central (ou CPUs) que existem tipicamente em computadores e que, embora menos poderosas que as GPUs, foram de extrema importância para testar a enorme base de dados de moléculas . Foi através das CPUs que se tornou possível “avaliar, com detalhe atómico, a capacidade que cada uma delas tem de bloquear ou limitar o reconhecimento entre as duas proteínas”, concretiza.
“Estes recursos computacionais permitiram-nos fazer uma espécie de ranking de moléculas, desde as menos à mais promissores”, explica, estando, assim, dados os primeiros passos nesta descoberta de armas eficazes contra a propagação do vírus. “Se nós não tivéssemos acesso a eles, teríamos testado um número muito mais pequeno destas moléculas e significaria muito menos hipótese de sucesso”, acrescenta.
“[Foram feitas] pequenas alterações, quase cirúrgicas, para que originem fármacos mais específicos, com menos efeitos secundários, com maior afinidade e para circularem melhor no nosso organismo.”
Da teoria à prática
Recolhidas as que apresentaram maior potencial – entre 20 a 30 -, a informação foi disponibilizada a outros grupos que colaboravam com o laboratório e que, depois de comprarem as tais moléculas, as testaram de duas formas distintas: in vitro e em modelos celulares. “Se tivessem efetivamente atividade inibitória interessante nestes modelos, seria feita uma otimização dessas moléculas”, concretiza o investigador.
Os resultados mostraram-se, de facto, animadores: duas das moléculas foram cobertas por patentes e posteriormente melhoradas. Introduziram-lhes “pequenas alterações, quase cirúrgicas, para que originem fármacos mais específicos, com menos efeitos secundários, com maior afinidade e para circularem melhor no nosso organismo”, acrescenta.
O passo seguinte – e aquele em que a equipa se encontra atualmente – é a testagem nas diferentes variantes do SARS-CoV-2 que têm surgido, com o objetivo de “assegurar que estas novas moléculas – e potenciais fármacos – em desenvolvimento, mantenham a atividade”, esclarece. “Para já, os nossos resultados dizem que sim”, sublinha.
Se estas suspeitas forem confirmadas, os ensaios animais estão próximos e, ainda com a esperança e ambição contidas, os clínicos também poderão estar ao virar da esquina.
Este trabalho foi produzido com o apoio da INCD, financiada pela FCT e FEDER através do projeto 01/SAICT/2016 nº 022153